Archive for julho 2015

Carta de Repúdio às pichações racistas na UNESP Bauru

Por: Coletivo Negro Kimpa

Pichações encontradas em banheiro do campus da unesp ao lado do Departamento de Comunicação Social, em que trabalha o professor Juarez. Foto: JCNET Segunda-feira, dia 27 de julho de 2015


Na semana passada,  um ato de extremo ódio racial no campus de Bauru da Unesp nos fez refletir e produzir esta nota.


Não falamos sobre os olhares desconfiados, nem sobre a nossa objetificação, muito menos sobre a apropriação cultural. A essas formas de violência, cruéis e desgastantes, nós, como pretas e pretos brasileiros, estamos acostumados a enfrentar.


Triste, mas verdadeiro.


Na semana passada vimos um mito ser colocado em cheque. Os ensinamentos da democracia racial não foram seguidos. Esqueceram que é neste país onde as raças convivem em harmonia. Deixaram de lado o suposto amor incondicional entre as pessoas pretas e brancas. Não se recordaram que  a grande marca de nossas terras é a miscigenação, fruto da união dos povos.


Racismo? Aqui não! Só nos EUA ou na África da Sul.


Pois bem.


Escritos de extrema violência e covardia foram feitos nos banheiros em frente ao Departamento de Comunicação Social, DCSO, e ao Departamento de Ciências Humanas, DCHU, da Unesp campus de Bauru.


“Unesp cheia de macacos fedidos”, “macaco fedido”, “negras fedem”, “as negras da unesp”, “Juarez macaco”. Mais do que tudo isso, ao final, o agressor ainda nos questionou. “O que vai fazer? Um coletivo”.


A resposta para o burro e ignorante questionamento desse racista é simples. Não faremos um coletivo. O Coletivo Negro Kimpa já existe e uma das nossas razões é essa, trazer à tona atos racistas como esses e destruir o mito da democracia racial.


Ações de puro ódio apenas afirmam a importância de grupos como o Kimpa e o Abre-Alas, coletivo feminista do campus, afinal, muitas das ofensas se dirigiram de modo contundente às mulheres negras. O grupo mais vulnerável da sociedade brasileira.


Ressaltamos também o fortalecimento do NUPE, Núcleo Negro da Unesp para Pesquisa e Extensão, grupo coordenado pelo brilhante professor e grande militante Juarez Xavier. O NUPE é um espaço de produção de conhecimento sobre a questão étnico/racial no país e uma grande ferramenta de emporaderamento para que negras e negros entendam os mecanismos do racismo no Brasil e possam assim combatê-lo.


Não era possível, porém, esperar algo muito diferente da comunidade unespiana. A universidade aceitou a política de cotas, mas não promoveu nenhum debate sobre a questão étnico/racial de modo incisivo, muito menos pensou em políticas para essa população negra que compõe o grupo de estudantes, funcionários e professores da Unesp. E a tendência é que esses casos só venham a aparecer com mais força. A maior presença de negras e negros na universidade, espaço historicamente destinado à branquitude, gera incômodo. Desconforto tão grande que vem, inclusive, destruindo a democracia racial do Brasil.


Ofensas como essas não nos farão recuar. Tudo será arquivado, assim como as medidas legais serão tomadas. Racismo é crime e o que foi feito está sob investigação. Por meio do NUPE, abriremos uma sindicância interna para apurar o caso.


Por último, gostaríamos de ressaltar a covardia da atitude. Ofender a comunidade negra com escritos em cabines fechadas é a maior demonstração possível de medo. Sim, a Unesp vai ficar preta. E se você está incomodado, é porque nosso trabalho está sendo bem feito. Pode nos atacar, xingar, ofender. Não vamos recuar. Nem um centímetro. Estamos prontos para o enfrentamento em todas as esferas.


Poder ao povo preto!

Coletivo Negro Kimpa

Mano do Livramento

A conhecida história de um menino desconhecido

Por: Giddeão Gasparini

                Pelas vielas do morro do Livramento corria e crescia Mano, carregando o nome do lugar como sobrenome já que o do pai não tinha.  Sua mãe, Maria, foi expulsa de casa e se refugiou numa pensão que  pagava com favores, dormindo entre os animais para poder gerar seu guri. Cheia de dores e imunda, deu à luz a mais uma criança que haveria de enfrentar o mundo sombrio à sua volta. Sem condições de sair da pensão foi amparada por Madalena, uma outra que também morava de favor e dormia entre Animais.

                Sujo e chorão, nasceu com cara de fome e sua mãe notou que tinha sequer pensado num nome para lhe dar. Na verdade havia pensado em Jesus todo esse tempo, mas crente no seu pastor, achou que seria blasfêmia chamar um preto como seu rebento pelo mesmo nome de seu Cristo loiro do olho azul.

                Madalena, moça da vida, sugeriu Emanuel, nome do nosso senhor e do padeiro, dizia ela. Talvez ele crescesse e se tornasse gente, dono de algo, e assim poderia trazer pão para o povo. Emanuel ficou e Madalena se tornou sua madrinha, pois havia se apegado ao menino e à menina. Foram então convidados a se mudarem para o Livramento. Havia rumores que os soldados do Estado subiriam a favela em que estavam e as coisas costumavam ficar feias para os inocentes.

                Já crescido e desmamado, Maria não aceitava viver às custas da amiga. Deixou o menino ser criado pelo Morro enquanto batalhava para não morrer de fome. Tornou-se faxineira, varrendo e descobrindo sujeiras embaixo do tapete da família direita que custava a pagar o que lhe era de direito, numa casa onde parecia jorrar vinho, enquanto na sua mal tinha água.  O suado salário que ganhava, usava para comprar a comida insosa com preço salgado para seu guri.

                Com cicatrizes do passado e carregando a cruz da fome, buscava amparo em Deus, mesmo que isso lhe custasse uma décima parte do seu pouco dinheiro. Mano que sempre a acompanhava cresceu ouvindo sobre um salvador que não parecia em nada com os heróis que via na TV, exceto pela sua cor. Como alguém podia ser um salvador se a única promessa que trazia era dor? Com o tempo assimilou que falavam do tal Governador.

                Na idade de estudar, com muito trabalho foi para a escola. Algumas sílabas conseguia juntar, mas só ia até ali, já que juntar sua mente com a da fessora era mais complicado do que matemática, à qual a divisão não batia: uma pra 40 neguinho.  Foi passado de ano arrastado da mesma maneira que arrastava o chinelo de manhã no caminho. Já adolescente, com pouco trabalho largou a escola.

                A mãe havia perdido o emprego depois dos patrões sentirem falta de algo na casa, talvez o motivo para demiti-la. Madalena não morava mais com eles, pois o pastor dizia que não era certo dividir o teto com alguém como ela. Mano não entendia. O que tinha de errado em morar com alguém que dava carinho para eles e ainda trazia comida para casa? Com Maria desolada e sem Madrinha para consolá-la, a responsabilidade da casa recaía sobre seus ombros juvenis.

                Saía cedo de casa e passava o dia no farol, perdido num mar sem rumo enquanto via passar rapidamente os carros e sua infância. Na sua frente, enxergava apenas o sinal vermelho, sendo atropelado pelos problemas que uma criança não deveria conhecer. À noite chegava suado, mas carregando uma ou duas sacolas, cumprindo a sina que lhe foi dada com o nome. Carente da sua meninice, deitava no colo de sua mãe enquanto a ninava. Mas antes que ela acordasse, já tinha voltado a ganhar a vida. 

                E pelas vielas do morro do Livramento corria Mano numa dessas manhãs em que o mundo está frio, mas não permite manha. Lá estava o garoto já com responsabilidade de homem e alma de menino a correr para ganhar a vida. Naquele dia o tal Governador que tanto ouvira falar tinha cumprido sua promessa e veio ao encontro dos necessitados, mas a sua frente vinha um bando de cachorros armados a ladrar sem parar. Assustado se meteu por entre os vãos dos barracos perdido sem rumo. Só parou ao ver o final de um beco e encontrando uma bala que também se perdera.


                Escorria pelos tijolos o sangue do menino, como o reboco que faltava naquela parede. Escorria para o chão o corpo inerte do guri que achavam ser ladrão. Escorria as lágrimas de Maria ao ser obrigada a ver na TV justificativas de juízes sem magistrado para a morte do seu menino. Escorria pelo ralo a esperança do Livramento ao ver mais um de seus filhos crucificado. 

Poema : Mandamentos da negação (I)


Agnes Sofia Guimarães

Quais regras quebraria
Se, depois das rodas,
Risos, nossos olhos,
Eu alcançasse seus lábios?

Se eu dissesse que a pele dela
Não é enluarada
E no meu tecido
Não há manchas de carvão?

E qual é o crime ao denunciar,
Com afeto e mil orgulhos,
A cem infrações
do meu desejo?

Eis as provas, sem remorsos:
Luzes,
Estalos,
Cacos de vidros,
Tudo e nada ignorado.

Diga a sentença, eu suplico.
Vou pagá-la com prazer;
Quero minhas brasas em comunhão,
Da senzala para o seu altar.

Nunca há juras:
Não as peço.
Nunca há carinho:
Não a espero.

Nunca, e há nuca
Encontrada no seu engano
Das ondas fáceis do afeto.
O que resta é imensidão,
Imensidão dos retalhos.
Nos seus dedos, minha nuca.

Diga a sentença,vai:
Livre, vou pagá-la.
Livre das suas mãos,
Mordaças do meu grito,
Guardiãs da sua vergonha.

Diga a sentença, vai:
Livre, quero clamar minha loucura.
Efusiva, quero expor seus olhos
Que engoliram suas palavras.

Aquelas que guardou para ela,
Ela que brilha tanto quanto estrelas,
Já mortas.
Não se preocupe, pois:
Há vida nas minhas lágrimas,
Pérolas que furtei do seu medo.

Pobre de você, espada partida.
Eu fiz hóstias da sua negação,
Uma prece a minha liberdade:
A exposição do nosso idílio.

Diga a sentença, vai.